Uma análise do movimento social Ni Una Menos Argentina, a partir da perspectiva da feminista boliviana Maria Galindo, que durante anos tece um laço de rebeldia com organizações, bairros e as mulheres do nosso país. O que explica esse movimento no contexto da luta global das mulheres, o que contribui para a despatriarcalização que está em curso na América Latina e por isso não pode ser exportado. Um texto para agitar o debate.
Queremos todo o paraíso
– María Galinda, translated by Oliver Simões
Da dor do feminicídio e contra a violência de gênero surgiu na Argentina o Ni Una Menos. As marchas – desde a primeira que foi convocada – eram algo novo para os feminismos latino-americanos. Um enorme palco, sem direção, sem uniformidade, sem mediadores, sem o monopólio da palavra.
Todas sabem o que dizer, porque elas falam por si, de modo que não só os corpos são o símbolo máximo destas novas formas de luta; mas a boca, muitas bocas, bocas vorazes e boconas ao mesmo tempo também que estão rompendo um longo silêncio.
Todas sabem que o que elas dizem ninguém pode dizer em seu nome, porque é a história de Carmen, Juana, Julia. Nenhuma tese acadêmica é capaz de falar ou tão claro, ou tão simples, ou tão profundo, nem tão imediato: o discurso de Ni Una Menos é um discurso espontâneo construído a partir da vida cotidiana [das mulheres] e isso é maravilhoso.
Ni Una Menos não é um movimento mas uma mobilização.
Ele não tem proprietárias ou criadoras.
Também não é um fungo espontâneo, mas é a soma das dezenas e centenas de esforços cujos cantos são tampouco uniformes.
O Ni Una Menos é todas as gerações e todos os segmentos sociais.
É uma rebelião, uma rebelião liderada por mulheres a partir de baixo e, portanto, tem muita força.
Quem convoca Ni Una Menos?
Quem convoca é a história, quem convoca é a raiva, a esperança e a dor ao mesmo tempo. A indignação o convoca, por isso também não pertence a ninguém e tem sido um ato de abuso quando Macri nomeou Fabiana Tunez para um cargo burocrático, por supostamente ser relativa à organização do Ni Una Menos. Não causa indignação por Macri, porque os patriarcas sempre fizeram isso para controlar e aplacar a força mobilizadora [das mulheres]. Indigna porque é apenas um exemplo da típica voracidade parasitária que consiste em juntar-se à mobilização para se apropriar de suas entranhas.
Ni Una Menos não tem donas, esse é o seu poder.
Ni Una Menos não tem um discurso oficial, tem palavra direta.
Sua poesia é irritada, muito irritada.
Ni Una Menos é uma força despatriarcalizadora que é um ponto de partida e um horizonte, ao mesmo tempo, pois verifica-se que o que nós queremos é despatriarcalizar. Por isso, Ni Una Menos fala de liberdade, felicidade, tranquilidade.
Não de igualdade, não de inclusão, não de equidade.
Sem clichês oenegeras, cujo discurso não tem lugar no Ni Una Menos.
Despatriarcalizar significa mudar tudo, desde o nome das ruas até a invisibilidade das mulheres.
Ni Una Menos não é uma lista de reivindicações que podem ser atendidas, nem negociadas por qualquer pessoa.
O que essas mulheres querem?
A resposta é simples: TUDO.
Pode ser resumido muito bem em nosso grafite: QUEREMOS TODO O PARAÍSO.
Isso tudo tem a ver não apenas com o basta da violência machista, mas também com o que o neoliberalismo tem significado para as mulheres, por isso as costureiras, as bolivianas exiladas na Argentina do neoliberalismo boliviano, as verdureiras, as padeiras – as operárias das fábricas ocupadas e todas de uma lista longa e interminável, também estão lá.
Ninguém quer estar porque o compromisso é com ela mesma.
A indignação é também contra o kirchnerismo? Cristina [Kirchner] não falhou com as mulheres? Lembre-se que decidiu não descriminalizar o aborto por cuidar das relações com a igreja, lembre-se que criou programas de assistência financiados com a renda do pacote corporativo transgênico e a exploração mineira para conter o neoliberalismo, mas apenas para contê-lo e nada mais.
Ni Una Menos é por isso anti macrista ou Kichnerista, mas responsabiliza ambos e em porções iguais de repúdio.
Ni Una Menos e o feminismo
Ni Una Menos é outro feminismo. É o feminismo intuitivo, o feminismo que não se aprende em sala de aula, mas é o único com o gosto salgado das lágrimas de [nossas] mãe[s]. É o seu feminismo intuitivo, que vem de dentro de você e não para ser catequizado de fora. É o feminismo inteiramente despatriarcalizador hoje e agora. É o feminismo sem controle de conteúdo, é feminismo que vem de baixo e não de cima.
E, por sua vez, não é feminismo, mas feminismos.
O Ni Una Menos é o feminismo para o qual uma mulher presidente, 10 ou 50% das deputadas, planos de igualdade e demais bobagens não significam nada.
Source: Ni Una Menos (in Spanish)